Resenha publicada hoje,4/12/2021 na coluna “Depois do Play”, do jornal O DIA
Por : Mácleim Carneiro
MUITO ALÉM DA VISÃO
A vida é bela e instigante porque nem sempre o que está sendo escrito pode ser lido e decifrado no presente. Na maioria das vezes, cabe ao futuro esclarecer e decifrar o que havia sido traçado e invisivelmente construído. Sobretudo, quando urdido pelos desígnios dos deuses apolíneos. Por esse modesto ponto de vista, posso imaginar alguém, deficiente visual, com apenas 12 anos de idade e um pandeiro, em precárias condições, chegando a Maceió, para sobreviver e labutar sozinho. Depois, muitos anos depois, tornar-se um autêntico artista popular, com uma legião de admiradores! Refiro-me ao artista com A maiúsculo, Edmilson Mendes, popularmente conhecido como Ceguinho do Centro, que acaba de lançar o seu primeiro registro fonográfico, o interessantíssimo e bem cuidado álbum Janela Para o Mundo!
Sua história de vida engrandece a percepção de sua trajetória musical, pois foi a música que, entre outras possibilidades, concedeu-lhe visão para derrotar a miséria, o preconceito, a hostilidade e até mesmo as agressões dos comerciantes da Rua do Livramento que, nos primórdios de sua faina como artista de rua, incomodavam-se com a sua presença naquele logradouro. Para melhor contextualizar este parágrafo, é importante saber que Edmilson ficou cego com poucos meses de vida e foi abandonado pelo pai. Teve uma infância de agressões, perpetradas pelo padrasto. Por isso, fugiu de casa cedo, para cantar nas feiras de vários municípios do agreste pernambucano. Ele nasceu em São Bento do Uma, mas se considera alagoano da gema! Assim, como artista de rua, Edmilson conseguiu ajudar no sustento da sua mãe e de mais seis irmãos. Aliás, lendo sua biografia, muito me honra ter ao menos uma coisa em comum: assim como Edmilson Mendes, eu também cresci ouvindo a amplificadora em Murici. Ou seja, os alto-falantes estrategicamente pendurados em postes, corriqueiros no interior do Nordeste.
Personalidade e Convicção
A história desse artista é fascinante e não caberia em tão pouco espaço, portanto, sem mais delongas, vamos direto ao que nos faculta a coluna Depois do Play. A Farinhada (Mácleim e Sávio de Almeida) abre o álbum e também as minhas melhores lembranças de um espetáculo de enorme êxito na cena teatral alagoana. Sim, foi uma grande surpresa receber esse trabalho e perceber a gentileza e generosidade desse artista popular, ao incluir o tema A Farinhada, da peça homônima, no repertório do seu primeiro registro fonográfico. Aproveito para fazer uma ressalva cogente: certamente, por descuido, não foi creditado na ficha técnica do álbum o nome do grande Sávio de Almeida, coautor dessa canção. Espero que esse equívoco seja corrigido.
Por falar na Farinhada, a peça, não posso perder a oportunidade de contar um fato pitoresco desse artista autenticamente popular, de personalidade forte, em defesa dos seus critérios sobre a sua arte e de como fazê-la. Pois bem, mais que acertadamente, o grupo teatral Joana Gajuru escolheu o Edmilson Mendes para cantar e gravar toda a trilha sonora da peça A Farinhada. Nessa época, eu não morava no Brasil e não pude acompanhar as gravações. Daí, só depois do espetáculo ter estreado e tornar-se um sucesso de crítica e de público, tive a oportunidade de assisti-lo. Notei que uma das canções, a mais dolente e triste, composta especificamente para o que aquela determinada cena pedia, tinha sido gravada em outro andamento, bem mais alegre e, portanto, fora da atmosfera da cena. Evidentemente, estranhei e fui pedir uma explicação à direção do espetáculo. Foi então quando fiquei sabendo que o Edmilson Mendes havia se recusado a gravar a música no andamento original, alegando que “não cantava música triste, só cantava música alegre.” Claro, passei a respeitá-lo ainda mais, pois, excetuando-se o contexto profissional, ele havia demonstrado personalidade em sua convicção e não se deixou manipular, como tantas vezes acontece com artistas da nossa cultura popular, explorados que são, a partir da própria humildade.
Produção Certeira
Para ganhar espaço, serei lacônico na análise desse admirável e importante trabalho, apesar de termos detalhes e aspectos suficientes para uma substanciosa abordagem em cada uma das 8 faixas. Antecipo, porém, que esse trabalho provocou contentamento, surpresas e aplausos nesse velho fruidor de coisas boas. Portanto, citarei apenas alguns quesitos pontuais, a começar pela produção musical de Wilson Santos, que optou por uma arregimentação enxuta, com o talento e a criatividade de músicos como Xameguinho (sanfona), Gama Junior (flautas), Zeza do Coco, Maysa Gomes e Caió Odé (vocais), além do próprio Wilson Santos nas percussões e vocal. Sob a batuta do certeiro produtor, alguns fatores foram fundamentais para o excelente resultado desse álbum! Um deles é a diversidade rítmica e percussiva, com a síncope característica da musicalidade caeté, que Wilson Santos soube dosar magnificamente bem. Aliás como percussionista e pesquisador, Wilson Santos tem o olhar atento sobre as nuances rítmicas dos folguedos alagoanos e, a partir desse conhecimento, imprimiu inúmeras pitadas criativas, tipo a polirritmia em Guerreiro Alagoano (domínio popular) e na surpreendente Meia Noite (Edmilson Mendes). Outra característica bem interessante foi a utilização de tambores graves em substituição, por exemplo, ao trabalho que desempenharia um contrabaixo. Tudo isso com um molho muitíssimo bem swingado, com sabor de sururu e do que caracteriza a riqueza da cultura popular alagoana!
Tecnicamente, Dácio Messias deu um show de mixagem, com tudo soando perfeitamente perceptível e em seu devido lugar, o que torna a audição desse álbum deliciosamente confortável, da primeira à última faixa! Propositadamente, deixei para comentar sobre o título, Janela Para o Mundo, no fim desse escrito, pois, embora os releases afirmem que foi escolhido porque Edmilson Mendes considera o veículo rádio a sua janela para o mundo – e certamente não deixa de sê-lo – entendo que tem um significado ainda maior. Sobretudo, para um artista deficiente visual, posto que, imageticamente e até poeticamente, as janelas significam visão! A abertura para amplidão em possibilidades e novos horizontes. Em Moça Namoradeira (Edmilson Mendes), um hibrido entre um dos ritmos do guerreiro e uma marchinha bem conduzida por uma caixa, tem um verso que diz: “É melhor beber veneno do que morrer desprezado”. Pois eu diria que esse verso pode ser reestruturado assim: É melhor beber veneno do que morrer sem ouvir Janela Para o Mundo!
SERVIÇO
Janela Para O Mundo, Edmilson Mendes
Disco físico: À venda pelo fone (82) 98875 4958
Preço: R$ 10,00
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!
"Uma cidade que não tem memória é uma cidade sem alma. E a alma das cidades é sua própria razão de ser. É sua poesia, é seu encanto, é seu acervo. Quem nasce, quem mora, quem adota uma cidade para viver, precisa de história, das referências, dos recantos da cidade, para manter sua própria identidade, para afirmar sua individualidade, para fixar sua municipalidade." Extraído do livro Maceió 180 anos de história 5 de dezembro de 1995.