Caderno 2

Por, Bairros de Maceió - 16/09/2009

Retrato cantado: O São Francisco na moldura

O Coretfal retorna aos palcos, participando de uma discussão que preocupa a todos: o destino do rio São Francisco. No espetáculo Retrato Cantado do São Francisco, o tema ganha os matizes da linguagem artística sem perder de vista a prática da cidadania.

No dias 19 de setembro, às 20 horas, o CORETFAL / Ponto de Cultura Encantando a Vida volta ao palco com Retrato Cantado do São Francisco, no teatro Gustavo Leite, encerrando a programação do ENCORAL 2009 – Encontro Internacional de Coros em Alagoas.

O espetáculo estreou em 2008, seguindo, na semana seguinte, para a primeira turnê nacional, em sete cidades das Serras Gaúchas, a convite da subsecretária de Cultura de Nova Petrópolis (RS), Lorena Seger Maldaner, que assistiu à prévia desse trabalho na abertura do ENCORAL – 2007. Na sequência, o grupo se apresentou em cidades ribeirinhas de Alagoas e, no momento, elabora projeto para mostrar o espetáculo nas demais cidades alagoanas e estados por onde o rio passa, desde Minas Gerais (Serra da Canastras) a Alagoas.

Retrato Cantado do São Francisco foi montado com patrocínio da Petrobras e apoio do Governo do Estado, Prefeitura de Maceió e Fundação Teotônio Vilela. Tem regência e direção musical da maestrina Fátima Menezes, direção cênica e roteiro de René Guerra e coreografia de Isabelle Rocha e Sormany Sousa. A artista plástica Mirna Porto Maia é responsável pela cenografia; a luz é assinada por Flávio Rabelo. O figurino – à base de redendê (uma renda trabalhada na região do Baixo São Francisco) – tem concepção e confecção do estilista Tony Chaves.

O trabalho está montado sobre três vertentes básicas: a religiosidade da gente ribeirinha; a relação com as águas; a evocação das memórias à guisa de identidade.

Essa trupe de profissionais reconhecidamente talentosos vem, há mais de um ano, gestando o espetáculo. São mais de 40 artistas em cena, propondo, por meio do canto coral – aliado à dança, teatro, projeções, depoimentos, cenografias e indumentárias muito peculiares – reflexões sobre uma realidade que envolve milhões de pessoas: os ribeirinhos das cidades por onde o rio passa, da nascente à foz; os cidadãos das capitais e adjacências que, mesmo de forma indireta, recebem as bênçãos do rio. 

O repertório sintetiza o escopo do trabalho, montado sobre três vertentes básicas: a religiosidade da gente ribeirinha; a relação diuturna com as águas; a evocação das memórias à guisa de identidade. São cantigas de trabalho colhidas durante as andanças do grupo; canções étnicas que remetem a índios e negros; peças do cancioneiro popular que aludem a personagens da paisagem ribeirinha. “Cantar a beleza desse cenário é gratificante à medida que, dessa forma, são traduzidos pedaços significativos da nossa identidade cultural, nossa relação com o rio e todos os caminhos que ele percorre”, celebra Fátima Menezes.

O grupo realizou extensa pesquisa em cidades ribeirinhas do Baixo São Francisco, buscando beber, na fonte, o conteúdo e a emoção para esse novo trabalho. Diferentes equipes, lideradas por Fátima Menezes e René Guerra, visitaram Penedo, Porto Real do Colégio, São Brás e Piaçabuçu, municípios alagoanos situados à beira do São Francisco, de onde se avista Sergipe, a outra margem da mesma história.

Câmeras nas mãos, olhar atento, todos os sentidos impregnados, os coralistas partiram para o que se configurou uma espécie de laboratório da vida real. “A intenção é que todos possam saber o que estão cantando, que histórias estarão representando. Isso faz com que o espetáculo seja convincente pela sinceridade da proposta”, explica René Guerra.

“A memória do São Francisco está nas pessoas que vivem em seu entorno, nas cantigas que preencheram e preenchem os trabalhos coletivos”. (René Guerra)

Retrato Cantado do São Francisco é uma ode ao rio São Francisco e a todas as representações desse que é unanimidade nacional, como ícone de uma integração ameaçada. O trabalho é fortemente permeado pela atmosfera ritualística, materializada numa espécie de fé cênica, expressa no olhar eloqüente, nos gestos secos, na cena “limpa”. “A proposta é que o espetáculo tenha controle de sua própria emoção para não roubar, do público, a oportunidade de encontrar a dele”, esclarece o diretor.

Em cena, o grupo assume, sem disfarces, a celebração das águas e seus mistérios e rituais; a declaração de amor ao rio e sua gente, seu pedido de socorro. Referenda a necessidade imperativa e urgente de se deter o processo de degradação ecológica e incrementar os programas de revitalização, ainda incipientes. Reclama a proteção das nascentes, a recomposição das matas ciliares, o saneamento básico das cidades e vilas localizadas às margens do rio, os projetos de irrigação, a inserção social da população.

O espetáculo declara, em todas as entrelinhas: não se pode falar em riqueza, preservação, felicidade, sem evocar a imagem do rio que míngua, cabisbaixo, em evidências contundentes. Trata-se de reconstruir memórias e referendar identidades. Isso implica falar do trabalho que, sabe-se lá há quantos séculos, proporciona o sustento da gente ribeirinha; do convívio entre diferenças e semelhanças que desenharam relações sociais absolutamente peculiares naquela região. 

Segundo René Guerra, “a memória do São Francisco não está apenas em suas águas, ou no que ele um dia foi. Está nas pessoas que vivem em seu entorno, nas cantigas que preencheram e preenchem os trabalhos coletivos”. Para o diretor, tudo isso está dito, mas é preciso disposição para uma viagem insólita: “existem, nessa encenação, vazios deixados, propositalmente, para que o espectador possa recriar suas próprias memórias”.

“Nas margens do São Francisco todos estão lembrando: jovens e velhos, ambos construindo memórias, fundidas numa imagem coletiva cheia de água”. (RG)

E, das margens à ribalta, seguem as reflexões sobre a saga heróica do São Francisco. O que antes era um viveiro de águas caudalosas, onde as espécies conviviam em produtiva harmonia, definha a olhos nus. O Velho Chico reage, à espera de socorro que lhe devolva o gosto de viver para assistir, mais uma vez, ao alegre trânsito dos navios, deslizando sobre a antiga abundância de seu leito; à algazarra dos moleques, nadando e mergulhando em suas águas, fingindo medo das “terríveis” piranhas; às lavadeiras e suas cantigas, perfiladas às margens, naquele esfrega-esfrega-de-tirar-sujeira de muitos, muitos panos.

Foram-se as matas do entorno. Estão indo as águas que cedem lugar àquela areia parda de cuja existência, praticamente, não se suspeitava, de tão escondida que vivia sob o leito do rio. O nível de assoreamento já não permite que os navios passem por ali e as piranhas... bem, não se sabe ao certo quantas ainda perambulam naquelas poças. Mas a lembrança é intensa e virou herança entre as gerações que, uma a uma, permanecem contando histórias, no esforço amoroso de não deixar que a falta delas leve embora a esperança de soluções concretas para problemas que se acumulam. “Nas margens do São Francisco todos estão lembrando: jovens e velhos, ambos construindo memórias muitas vezes conjuntas, fundidas numa imagem coletiva cheia de água”, afirma René.

A essa gama de transtornos, soma-se a dúvida, expressa em perguntas que não querem calar: o que é a transposição? A quem servirá? Que impactos e benesses trará à vida ribeirinha? A idéia é centenária, dataa dos tempos da colonização portuguesa, como proposta de redenção para os transtornos da seca no Nordeste. Há concordâncias e controvérsias e a desinformação continua gerando especulações de toda ordem.

Mas, felizmente, ainda há, em vários discursos e intenções, o sonho de salvar a vida do São Francisco, cuidando do que restou e resgatando o que se perdeu, por meio de ações concretas para a revitalização do rio. E essa discussão, por certo, não é uma digressão: interessa aos viventes de todas as “tribos” que se amalgamaram na terra brasilis, formando o que hoje elas próprias chamam de Pátria.
 
“Queremos, sobretudo, cantar um rio que sempre falou e continua falando de esperança” (Fátima Menezes)

Uma coisa é líquida e certa: enquanto se definem os novos caminhos – ou descaminhos – o rio permanece espreitando, testemunhando vivências e protagonizando histórias e lembranças narradas sob o olhar puxadinho dos índios; a exuberância das comunidades quilombolas; a partir da nostalgia dos colhedores de arroz; ou nos versos monocórdios das rezadeiras – respeitosas sentinelas dos finados; ou incrustadas nas mãos talentosas dos artesãos; ou sob a marcha calejada dos sertanejos, as muitas andanças marcadas na pele; ou, por fim, na visão de quem sempre enxergou o rio das janelas dos casarões que se debruçam solenes, reafirmando os contrastes da vida ribeirinha.

Pois é esse panorama que o CORETFAL pretende apresentar, sob a forma de canto coral & Cia. A intenção é cantar as histórias que se reúnem em torno do rio, sobremaneira, do baixo São Francisco. Descrever o movimento da gente parida e criada em suas margens. Ou dos forasteiros que se apaixonaram e se quedaram por ali. Celebrar os feitos dessa extraordinária onipresença em torno da qual orbitam narrativas, festejos, crenças, lendas, sobrevivências, polêmicas, resistência, quimeras e lembranças. Memórias.

Segundo Fátima Menezes, o grupo deseja mostrar, musical e cenicamente, de que forma a presença do São Francisco emoldura e, às vezes, define os destinos de quem vive em seu entorno. O espetáculo aspira ser, na verdade, uma grande viagem de barco, a pé, a cavalo, de ônibus: a ótica deve variar de acordo com o meio de transporte escolhido pelos diversos públicos. “Queremos, sobretudo, cantar um rio que sempre falou e continua falando de esperança”, diz a maestrina.

SERVIÇO
Evento: Espetáculo Retrato Cantado do São Francisco
Onde: Teatro Gustavo Leite
Quando: 19 de setembro, às 20 horas
Ingressos: Já disponíveis na sede do CORETFAL (IF/AL), mediante entrega de 1 quilo de
                   alimento não perecível p/pessoa/dia. 
Mais informações: Coordenação de Comunicação: Gal Monteiro (coordenadora) – 9334 - 4734 / 9645-1118 – Ludmila Monteiro – 9645-1117 – Isaac e Léo -
www.encoral.com.br

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Curiosidade

Treze vezes vencedor do prêmio Notáveis da Cultura Alagoana - Prêmio ESPIA.

"Uma cidade que não tem memória é uma cidade sem alma. E a alma das cidades é sua própria razão de ser. É sua poesia, é seu encanto, é seu acervo. Quem nasce, quem mora, quem adota uma cidade para viver, precisa de história, das referências, dos recantos da cidade, para manter sua própria identidade, para afirmar sua individualidade, para fixar sua municipalidade." Extraído do livro Maceió 180 anos de história 5 de dezembro de 1995.

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